Jussara Lucena, escritora

Textos

O pêndulo

Há muito o radiestesista vivia sozinho e passava a maior parte do tempo debruçado sobre seus estudos, revisando suas anotações. Procurava respostas para a sua falha, um erro que transformou a vida de sua família, mas não as encontrava.

Mais uma vez acordou cedo. Os pensamentos lhe reduziam o sono, tornando seus dias mais longos e difíceis de preencher. No espelho percebeu a barba crescida e desajeitada. A água fria jogada no rosto lhe trouxe algum conforto e um pouco mais de energia.

Pela janela da sala observou o sol nascente e teve um bom pressentimento. Abriu-a e o lugar ganhou vida com a brisa que soprava docemente trazendo para dentro o perfume das rosas cultivadas na casa em frente. O cheiro lhe trouxe a lembrança dos jardins tão bem cuidados pela esposa, local das brincadeiras com sua filha.

Voltou ao banheiro, tomou um banho, barbeou-se. Trocou a roupa que usara na última semana, calçou um tênis que há muito não usava. Foi até a padaria, caminhava com um leve sorriso no rosto. Não se importou com o olhar desconfiado de algumas pessoas que cruzaram seu caminho. Alguns o viam como o bruxo, isolado no casarão, castigado pelas falhas do passado. Ele aprendera a não lutar contra os que não acreditavam nas suas técnicas, na sua ciência.

Após o café, decidiu voltar aos estudos. Quando abria o seu diário para retomar os trabalhos, ouviu o som de palmas em frente a sua casa. O homem que o procurava já arrastara o pesado portão e se dirigia à porta de entrada. Beirava os trinta anos. Olheiras profundas marcavam sua face. Trazia debaixo do braço uma pequena pasta e nas mãos um embrulho. Sentindo sua aflição, Carlos abriu a porta.

- Bom dia! Por favor, o senhor é o professor Carlos Haderlot?
- Bom dia. Sim, sou eu, porém já há muito tempo não sou mais professor.
- Graças a Deus o encontrei! O senhor é um grande radiestesista, eu preciso da sua visão. Por favor, me ajude!
- O radiestesista que havia dentro de mim morreu há alguns anos – disse Haderlot fechando a porta.
- Por favor, Sr. Haderlot, o senhor é a minha última esperança – Implorou o homem que, desesperado bloqueou a porta com o pé. Me permita ao menos explicar o meu problema. Não vou tomar mais que cinco minutos do seu tempo.
- Por favor, entre – disse o contrariado Carlos.

O visitante observou, sobre a lareira, um retrato de família: Carlos, alguns anos mais novo, uma mulher e uma garotinha de aproximadamente oito anos. Todos sorriam.

- São sua esposa e filha? – perguntou o visitante.
- Como é mesmo seu nome?
- Perdoe-me. A ansiedade me fez mal-educado. O meu nome é Bernardo.
- Estas eram minha esposa e filha – respondeu Carlos, cabisbaixo.
- Não queria aborrecê-lo, professor Haderlot. Perdoe-me novamente. Tenho certeza que vai entender o meu problema. – Completou Bernardo com um fundo de esperança na voz.
- Bernardo, me chame de Carlos.
- Pois bem, Carlos, eu tenho uma filha, está desaparecida. Espero encontra-la viva!

Carlos Haderlot foi tomado por um sentimento de profunda tristeza e o passado voltou aos seus pensamentos. Há doze anos ele atuava como professor em uma universidade. Seu trabalho o fascinava, tinha uma família, sentia-se feliz. Dividia-se entre a busca da lógica, exatidão, precisão da física, disciplina que ministrava como professor, e a radiestesia. Para ele o desafio de interpretar as radiações que ultrapassam os limites da percepção humana havia se tornado uma obsessão. Buscava entender como o cérebro humano podia decodificar informações presentes num campo virtual, no inconsciente coletivo e oferecer respostas lógicas para as questões. Valia a pena, mesmo com a opinião contrária daqueles descrentes que pensavam na radiestesia como o fruto de bruxaria ou resultado da ação de forças sobrenaturais, onde as varetas e os pêndulos eram movidos pela ação de demônios. Outros, simplesmente desacreditavam. A radiestesia era estudada e praticada há milênios e muitos a conheciam apenas como o uso de varetas para encontrar a água no subsolo.

Haderlot possuía um diferencial, conseguia aplicar a telerradiestesia, técnica que lhe permitia localizar algo à distância, em qualquer lugar do planeta e seus diagnósticos eram, na maioria das vezes, precisos.

Tudo corria bem até o dia do desaparecimento de sua filha no caminho ente a escola e sua casa. A garota nunca havia saído sozinha, desapareceu na primeira vez.

Carlos Haderlot, o especialista em localizar coisas e pessoas, não teve sucesso em suas tentativas com a própria filha. A polícia e a população local se mobilizaram na busca da menina, também sem êxito. Haderlot foi alvo de piadas no meio científico, porém nada disso o incomodava, o que o destruía era o sentimento de impotência diante da perda de uma das pessoas que mais amava.

Os anos se passaram e não foi encontrado qualquer sinal da pequena Lara. Sua esposa definhava enquanto esperava por alguma notícia e embora não admitisse, culpava o marido pela falha nas buscas. Numa crise de desesperança, suicidou-se.

- Carlos, está me ouvindo? – perguntou Bernardo olhando para o rosto de Haderlot que parecia perdido no tempo.
- Sim. Estou convencido de que não posso ajuda-lo. Sou um fracasso meu caro.
Haderlot falou sobre os acontecimentos passados. Bernardo ouviu tudo com atenção e em certos momentos viu a sua última chama de esperança desaparecer, porém se manteve firme e tentou explorar todas as possibilidades. Ao final, disse para Haderlot:
- Então, tenho certeza de que entende meus sentimentos. Eu também tomei conhecimento do seu sucesso em muitos e muitos casos. Por favor, não negue a mim e a minha família uma pouco de esperança.
- Não posso!
- O que teria a perder?
Haderlot não respondeu. Baixou a cabeça e pensou por alguns instantes.
- Bernardo, eu preciso de algum tempo para decidir. É algo difícil de se pedir a um pai que procura por uma filha desaparecida, mas não tenho como responder agora. Volte em duas horas?

Bernardo não teve escolha. Logo que saiu, Carlos Haderlot abriu uma das gavetas de sua oficina, há muito tempo esquecida. Apanhou um estojo de madeira onde guardava um pêndulo metálico. Pegou uma flanela e limpou-o, com muito carinho. Sentou-se em frente a sua mesa de trabalho e procurou concentrar-se, baixando a frequência cerebral. Fazia tempo que não usava o velho instrumento. Agiu como se fosse a primeira vez. Programou-o, testando os movimentos de sim e de não, horário e anti-horário. Levou até a posição neutra, pronto para atuar. Haderlot fez as três perguntas básicas: Posso? Sei? Devo? O pêndulo respondeu positivamente às três questões. Finalizada a programação, fez novas perguntas, respirou fundo e aceitou as respostas.

Quando Bernardo retornou, Carlos o convidou para que fosse com ele até a oficina.

- Aceito tentar ajuda-lo, porém terei que pedir um pouco da sua atenção e paciência e que neste momento busque, com todas as suas forças, tranquilidade e concentração.
- Claro, farei tudo que puder. – Suspirou Bernardo, aliviado.

Haderlot iniciou o trabalho falando sobre a radiestesia. Deixou claro que durante as atividades seriam recebidas combinações de respostas possíveis, não uma predição única e absoluta. O resultado do trabalho estaria ligado diretamente à qualidade das perguntas formuladas e das informações repassadas silenciosamente por Bernardo. Carlos disse-lhe que qualquer ser humano poderia desenvolver suas habilidades radiestésicas e assim estabelecer uma conexão entre o seu subconsciente e o inconsciente coletivo ou mente universal, ponto onde se encontra a totalidade das respostas para aquilo que é conhecido.

- Há uma fonte de energia única que governa este universo, portanto, tudo está interligado, conectado, vibrando no infinito e emitindo ondas, sinais decodificáveis pelo nosso cérebro. Nós, seres humanos, somos um espírito que se utiliza da matéria. – Afirmou Haderlot, enquanto Bernardo ouvia tudo atentamente e em silêncio.
- Este pêndulo é uma ferramenta, que de certa forma, amplifica tais sinais e faz a conexão com o nosso cérebro – completou Carlos.

Haderlot apanhou o pêndulo e programou-o para as respostas de Bernardo, repetindo o ritual da manhã. Depois pediu que ele falasse sobre o desaparecimento da filha.

Bernardo lhe disse que morava com a família numa cidade vizinha. A menina saíra para assistir a um jogo escolar e não foi mais vista. Estava desaparecida há dois dias. O pai abriu a pasta que portava e mostrou um retrato da menina. Desembrulhou o pacote que carregava e tirou dele um vestidinho e um anel em ouro. Segurando-os como se fossem um tesouro, entregou-os para o radiestesista.

O radiestesista apanhou um mapa da cidade que possuía. Abriu-o sobre a bancada e pediu que Bernardo lhe mostrasse onde ficava a casa onde moravam, o ginásio de esportes e a casa das melhores amigas da criança, assinalando-os com círculos. Posicionou o pêndulo sobre o mapa e registrou cada uma das respostas, marcando novos pontos com xis. Depois de delimitar uma área, acessou o computador e imprimiu uma nova imagem de satélite do local, algo mais detalhado. Haderlot insistiu, durante alguns minutos, em testar dois pontos entre os assinalados. Concentrou-se ainda mais. Sua testa denotava o esforço mental que exercia. Carlos olhou para Bernardo, sorriu e disse:

- É aqui! Você conhece esse local Bernardo?
- Não muito bem. É uma região da cidade que não frequento. Não entendo porque minha menina estaria aí. É um conjunto de casas e terrenos abandonados, assustadores. Este ponto foi bombardeado durante a Guerra, servia de abrigo para população.

Saíram rapidamente. Quando chegaram ao local, parentes, amigos e a polícia já estavam presentes. Haviam antecipado as buscas nas imediações e nada tinham encontrado. Haderlot estava confiante, porém Bernardo pareceu abalar-se com a informação. Um burburinho se formou e Haderlot se afastou da multidão buscando o pêndulo no bolso do paletó. Pacientemente formulou novas questões e o pêndulo, de forma mágica, alternava seus movimentos num diálogo com o homem que parecia em transe.

Um dos presentes, em tom irônico disse: “acho que ele não vai encontrar nada mais do que um antigo e péssimo veio de água”. Outros riram também. Carlos não se abalou, caminhou e chegou até um velho galpão. Apontou para um determinado local.

- Ela está ali! – Falou de forma segura Haderlot.

No piso tomado pela vegetação havia algumas velhas tábulas e uma fresta entre elas. O local era escuro e dava acesso a uma espécie de porão revestido com tijolos, formando paredes espessas. No ponto inicial não encontraram nada. Um policial iluminou o local com uma lanterna e seguiram em frente. Bernardo pediu silêncio e chamou a filha. Nos primeiros momentos não houve resposta. Quando pensavam em desistir, ouviu-se um pequeno gemido, seguido por um choro fraco. O pai correu ao encontro da filha. A garotinha machucada, suja e de olhos assustados esboçou um sorriso quando viu o pai, abraçou-o e em seguida desmaiou.

Todos comemoravam enquanto Haderlot se afastava. Sozinho chorou. Estava contente por ter encontrado a garotinha e ao mesmo tempo triste por não ter feito o mesmo pela própria filha. Bernardo tocou seu ombro. Em sinal de agradecimento, abraçou-o por um longo tempo.

Haderlot tentou resgatar um pouco da sua vida nos dias que se seguiram. Organizou a casa e aceitou convites para palestras, surgidos após as notícias de seu êxito. Bernardo e a filha ligavam ou enviavam e-mails com certa frequência. Carlos Haderlot se questionava sobre o interesse de Bernardo pela radiestesia. Ele havia lido todos os livros indicados por Carlos e, com frequência enviava questionamentos, que ele prontamente respondia.

Certo o dia, Bernardo apareceu na casa de Haderlot, eufórico e sorridente.

- Carlos, lembra o que aconteceu com a minha filha no dia do desaparecimento.
- Sim, lembro. Ela voltava com as amigas e resolveu buscar um atalho para casa, errou o caminho e foi parar lá naquele local. Distraída, acabou caindo naquele velho buraco.
- Isso mesmo! Assim, eu me fiz a seguinte pergunta: não poderia ter acontecido algo semelhante com a filha de Haderlot? Aí, comecei a praticar a radiestesia e quero compartilhar com você uma descoberta! Veja, sua filha, ela está aqui! – Bernardo apontava para um ponto num mapa de uma cidade no norte da França.
- Como assim? Ela está num outro continente? – questionou-o Haderlot, surpreso.
- Desde que você encontrou minha filha, procurei uma forma de retribuir tudo o que você fez por mim e por ela. Também aprendi que quando estamos envolvidos emocionalmente a radiestesia nem sempre responde adequadamente.
- Outro radiestesista! Como não pensei nisto? – Perguntou-se Haderlot.

Lá encontraram Lara, agora uma jovem de vinte anos. Quando desapareceu, a menina foi levada por uma senhora solitária, com problemas mentais, que tentou cria-la como filha. Dois anos depois a raptora morreu e a menina foi internada em um orfanato, sem domínio da língua e com poucas lembranças que pudessem liga-la novamente às suas origens. Por várias vezes tentou fugir, viveu na rua, conheceu pessoas más. Passou fome, foi violentada, prostitui-se para sobreviver. Quando Haderlot a encontrou trabalhava como garçonete em um café e à noite dançava num bar. O pouco que ganhava mal dava para pagar o aluguel do quarto onde morava e as drogas consumidas. Lara voltou para casa e o radiestesista pode sorrir novamente. Não por muito tempo.

Haderlot voltou a trabalhar como professor. Reformou a casa e tentou compensar o tempo perdido. Precisava ser o pai e mãe que ela não tivera. A filha continuava distante e ele acreditava fosse necessário mais algum tempo para a ambientação a nova vida. Ela reaprendia a língua de sua pátria, conhecia novas pessoas. Também precisava livrar-se dos vícios. Ele precisava ter paciência e dedicação.

Lara sempre pensou que seus pais a abandonaram. Ainda acreditava nisso. Carlos gostaria de entender um pouco mais a filha, conhecer os seus problemas. Assim, lhe fez uma proposta:

- Lara, minha filha, eu ainda tenho percebido tristeza no seu olhar. Gostaria muito de ajuda-la. Você aceitaria participar de uma sessão de análise com apoio do pêndulo?
- Não Carlos, não gostaria. A falha deste pêndulo me condenou a uma vida no inferno. Não vejo como me ajudaria! A sua radiestesia não pode trazer de volta a minha mãe.
- Me desculpe, só queria ajudar, querida.
- Passei muito tempo sozinha, sei como sobreviver. Agradeço por me devolver uma casa para morar e por hora é o suficiente.

Carlos Haderlot morreu um pouquinho mais naquele dia e os sentimentos vividos nos anos de solidão lhe voltaram à mente, principalmente o de fracasso. Embora sua garotinha estivesse de volta, ela estava distante, infeliz e amarga. Esforçou-se para reconquistar a confiança da filha, sem sucesso. Lara ficava vários dias fora de casa, saía sem avisar e quando voltava permanecia trancada em seu quarto. As olheiras e os olhos vermelhos denunciavam suas ações. Ele não sabia como agir diante dos fatos. As respostas do pêndulo voltaram a ficar confusas. Procurou Bernardo.

- Ela voltou a usar drogas. Está envolvida com pessoas perigosas. Você precisa do apoio de um especialista.
- Eu sei Bernardo, mas acho que ela vai se afastar ainda mais de mim.
- Pense que talvez você possa perdê-la definitivamente. Carlos, tem algo que está me preocupando neste momento. Lara estava em casa quando você saiu hoje?
- Não. Ela saiu há dois dias.
- Vamos apanhar um mapa, acredito que precisaremos localizá-la.

Depois de algum tempo rastreando Lara, identificaram o ponto onde ela estava. Haderlot gelou quando o amigo lhe contara sobre suas percepções. Bernardo teve muita dificuldade em encontra-la, a energia vital da garota estava quase se acabando.
Quando chegaram ao velho hotel esbarraram nos corredores com gente da pior espécie e a cada porta aberta as cenas encontradas eram ainda mais assustadoras para um pai. Na última porta, num quarto imundo e sem ventilação encontraram Lara. Nua e inconsciente, ainda segurava a seringa em uma das mãos e na outra, amassada entre seus dedos, uma fotografia da mãe.

Carregaram a garota até o carro e depois para uma clínica. Carlos Haderlot ficou na sala de espera por três dias até receber a notícia de que a filha não corria mais risco de vida. Ligou para Bernardo, não conseguiu completar a fala. Do outro lado da linha o amigo ouviu o baque surdo do corpo do radiestesista contra o piso.

Durante os meses que se seguiram Bernardo acompanhou o tratamento de Lara. No dia de sua saída, ele a levou até um velho hospital no centro da cidade. No jardim ela encontrou Carlos Haderlot preso a uma cadeira de rodas, sem movimentos, sem fala. Chorando o abraçou. Os olhos de Carlos ganharam vida e movimento.

Lara apanhou o estojo de madeira onde guardava o velho pêndulo metálico de seu pai. Pegou uma flanela e limpou-o, com muito carinho. Beijou a testa de Carlos com ternura e iniciou um diálogo com ele, usando o instrumento como meio de comunicação. A garota nunca se sentira tão amada quanto naquele momento. O pêndulo parecia reproduzir a voz doce de seu pai. Bernardo e a filha assistiam a cena com a certeza que valera a pena resgatar Lara pela segunda vez. Lara tinha esta certeza também.

Texto premiado com o 5º lugar no Concurso Cidade de Penedo de Poesia e Conto - 2015.

Adnelson Campos
28/10/2015

 

 

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